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domingo, 28 de fevereiro de 2010

DEFESA SOCIAL E SEGURANÇA PÚBLICA

Defesa Social é o conjunto de mecanismos coletivos, públicos e privados, para a preservação da paz social. A defesa é do Estado e das garantias constitucionais, simultaneamente, e ocorre em três vertentes: A garantia dos direitos individuais e coletivos;
A segurança pública;
Enfrentamento de calamidades.
A segurança pública se torna, pois, apenas parte de um todo maior, que compõe em si, também, a tutela jurisdicional; a exposição das pessoas ao perigo; a defesa do Estado. Dessa forma, Justiça e Segurança se completam, mas entre elas se localiza uma área que é a de riscos coletivos. Essa área envolve a auto-defesa das comunidades - tanto para calamidades como para atividades tradicionalmente enquadradas em segurança, como o trânsito e os órgãos periciais. A finalidade deixa de ser a singela defesa do Estado para ser a paz.
A Constituição de 1988 é marcada pela transição. Àquela época, as feridas eram recentes demais entre esquerda e direita para que o medo de uns e outros tivesse sido superado. As marcas desse medo estão na Constituição quando se compara o conjunto de artigos garantidores dos direitos individuais e coletivos e a rigidez dos artigos que tratam de segurança pública. Relendo a Constituição, hoje, tentamos avançar harmonizando essas determinações. Foi assim que, tentando implantar o dispositivo que diz que a segurança é dever de Estado e responsabilidade de todos, é que chegamos ao conceito de Defesa Social.
Constatamos que a Constituição permite uma pequena abertura na revisão conceitual de segurança, quando fala uma única vez, é verdade (no art. 136 e seguintes) em paz social como um valor diferente de ordem pública. Àquela época, por "grave instabilidade" compreendia-se terrorismo e guerrilha, turbações eminentemente políticas. Hoje, a turbação advém principalmente do crime organizado.
Por isso, consideramos a Defesa Social como alternativa contemporânea ao antigo conceito de segurança nacional (art. 91). Num conceito de Defesa Social, a defesa do Estado é simultânea à defesa das instituições democráticas, disciplinando a Constituição (art. 136 e seguintes) a condição mais radical de intervenção do Estado para "preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou ameaçadas por calamidades de grandes proporções da natureza"
Dentro do contexto de defesa é especificada a segurança pública "para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio" através do aparelho policial (art. 144 e seguintes). Dessa forma, cabe ao Estado, ao mesmo tempo, a garantia dos direitos individuais e coletivos previstos na Constituição, condição indispensável para a manutenção da paz social, discriminando a Constituição a competência do Judiciário e do Ministério Público, deixando ao Executivo a formulação e/ou execução dos mecanismos restantes, de acordo com a sua competência legislativa nos vários níveis de organização.
A paz social é mencionada na Constituição apenas quanto a emergências provocadas por desastres, ressentindo-se o capítulo da segurança pública de uma postura reativa, vinculada estritamente à repressão. No entanto, a construção da paz – situação que permita a solução de conflitos e pendências sem violência, quer privada, quer de Estado – deve ser objetivo constitucional de política interna, como é, já, da política externa.
A adoção do conceito de defesa social (defesa do Estado e das instituições democráticas) envolve necessariamente a reorganização da estrutura do Executivo, dentro das diretrizes governamentais para a modernização da gestão (eficiência produtiva, equidade social e sustentabilidade).
O equilíbrio entre os interesses da sociedade, do Estado e do cidadão - a convalidação das garantias constitucionais com as necessidades públicas - é sempre muito difícil, particularmente em sociedades complexas. Move-se a sociedade em gerações, maiorias, minorias, grupos de pressão e exercícios diversos de poderes dos quais o Estado é o maior de todos, dado que este resulta de um pacto nacional. E a posição do cidadão com os diferentes poderes dos grupos sociais e com o poder do Estado muitas vezes é de franco confronto. Isso significa dizer que o setor de Defesa Social tem que administrar contradições, em que ora o interesse individual deve ser protegido a qualquer custo, ora o interesse social prevalece, e ambos terão que ceder às razões de Estado em casos extremos.
Significa dizer, também que a identificação dos interesses - e dos grupos representativos desses interesses - é tarefa permanente do setor, vinculada diretamente à manutenção da paz social. Essa tarefa envolve, necessariamente, atenção permanente ao entorno social, através de mecanismos específicos (controle de veículos, identificação, acompanhamento da natureza etc). Chama-se a esta atividade, hoje, de inteligência.
Por outro lado, a manutenção da ordem pública envolve a prevenção e a resolução de conflitos no âmbito da segurança pública. Assim, exige ela o diálogo permanente com a sociedade e com os demais Poderes de Estado - demais níveis do Executivo, o Legislativo e o Judiciário - o que se pode chamar de negociação, e, dentro desta, articulação.
Mas, para a paz social, há necessidade de atender-se a uma demanda específica: a garantia dos direitos individuais e das minorias, e daqueles a quem a Constituição garante privilégios em relação aos demais. A esta atividade chamaremos de proteção.
E, finalmente, a tarefa de manutenção forçada do cumprimento ao ordenamento legal, a repressão.
Temos, então, quatro mecanismos operacionais fundamentais do setor de Defesa Social:
  • Inteligência;
  • Negociação;
  • Proteção;
  • Repressão.
Embora esses mecanismos devam permear toda a estrutura, a complexidade da sociedade moderna, com sua cultura de massa, acabou por exigir especializações, forçando o ajuste das finalidades dos órgãos à predominância de um ou outro dos mecanismos operacionais sobre os demais.
Incidindo sobre uma estrutura antiga, em que a coerção e a repressão prevaleciam sobre a negociação e a proteção, e a inteligência só era compreendida enquanto mecanismo para o exercício do poder de Estado, os dispositivos constitucionais acabaram por gerar a hipertrofia das polícias - que passaram a exercer as quatro operações sem transição e, portanto, de maneira confusa e às vezes, até conflitante - e um pastiche, a área genericamente denominada de "assuntos jurídicos".O Brasil vive um processo de mudanças profundas, inclusive estruturais, entre pressões internas (expansão de fronteiras de produção, alteração dos sistemas de produção, aceleração tecnológica, reformulação da família e da escola, ascensão de minorias) e externas (abertura de bloqueios econômicos, comunicação e transporte internacionalizados) que, como em qualquer mudança social de escala, geram naturalmente tensões, conflitos e contestações, de intensidades e escalas diversas, no ordenamento legal e, sobretudo, na execução da lei.
A paz é uma opção nacional, claramente expressa na Constituição. Construir a paz num processo de mudança é o que responde, de fato, aos anseios da sociedade. Exige um esforço continuado e uma revisão constante de mecanismos. Estabelece, por outro lado, um princípio comum entre o Estado e a sociedade, um filtro para as ações dos dois lados - princípio que, de resto, já está expresso na vontade política constitucional.
A construção da paz envolve empenho contínuo para a redução de conflitos - quaisquer conflitos; da impunidade; da injustiça. Mas é, sobretudo, importante que o governo expresse claramente a sua opção pela paz. É preciso explicitar esta opção, mesmo que se considere que ela está contida no conceito de democracia. O setor de segurança pública precisa de uma diretriz clara, que reflita o que significa, para as diversas organizações, falar de democracia - visto que, hoje, democracia tem sido entendida mais como direito de organização sindical do que qualquer outra coisa.
Uma política pública deriva, forçosamente, do próprio pacto social que reúne as pessoas numa organização social. Ela é feita de opções que resultam em diretrizes, prioridades e, finalmente, normas legais ou consensuais. Como em todos os produtos de uma sociedade complexa, uma política pública se organiza no bojo mesmo das pressões da vida em sociedade e se constrói em produtos do confronto dessas pressões: minorias e maiorias, interesses de várias ordens (inclusive os corporativos). A diferença está em que, quando há consciência de que se constrói uma política pública há objetivos claros a serem alcançados e um rumo definido; o que não acontece quando os confrontos e pressões são resolvidos de maneira pontual, na filosofia do laissez faire, ou, mais modernamente, "de acordo com o comportamento do mercado", para usar uma analogia hoje tão em voga.
A política é pública porque envolve a sociedade como um todo na definição das opções: e é aí que ela se diferencia das políticas setoriais de Estado ou Governo. Estas deverão se integrar à política pública traçada, ou estarão em confrontação com a sociedade a que devem servir.
A construção de uma política pública de Defesa Social é a viabilização da opção pela paz, porque articula todos os segmentos envolvidos, abre os espaços de discussão e negociação, deixa sob os refletores da opinião pública os diversos interesses, identifica os agentes e deixa clara as responsabilidades. Além disso, uma política pública torna visível e factível o objetivo de longo prazo que, quando se trata de política de Estado ou Governo num regime democrático, com a rotatividade de representações necessária, geralmente são esquecidas em favor do que tenha repercussão imediata.
É dentro de uma política pública de Defesa Social que se pode dimensionar corretamente, por exemplo, a questão do ensino e a profissionalização de pessoas, atividades de longa duração que ultrapassam o curto horizonte dos governos. Ou, por exemplo, qual deve ser o papel dos municípios, grandes e pequenos, na manutenção da paz; qual a responsabilidade de empresas que operam com segurança, tanto na indústria, como nos serviços; qual o papel dos Poderes da República diante do cotidiano dos cidadãos. Esses assuntos têm que ser pactuados e analisados nos diversos ângulos de interesse para que a decisão seja exeqüível.
Com vista à construção dessa política pública de Defesa Social que se pode estruturar uma política de Segurança Pública, como uma ferramenta importante a alcançar o objetivo maior. O que é importante é ter-se claro que uma política de segurança pública é só uma parte da ação necessárias para romper-se, definitivamente, as amarras deixadas pela visão repressiva e puramente estatal no combate à violência e ao delito. Segurança pública está inserida no conceito de defesa social. Contudo aquela área se ressente de uma política federal que a oriente quanto ao rumo a tomar. Mas até nesse ponto tem encontrado dificuldades, diante da carência doutrinária sobre o assunto e do hermetismo em que o aparelho policial brasileiro se enclausurou. Daí a mesmice das idéias. Assim, para facilitar, alguns subsídios não fazem mal. Segurança é um sentimento. Resulta da percepção de estímulos através dos sentidos que, levados ao cérebro, se transformam em sensação e esta, por sua vez, sinaliza um estado de espírito. Assim, um alerta é sempre disparado ao ouvir um som assustador, ao perceber um odor de queimado, ao degustar algo desagradável, ao avistar uma situação arriscada ou tatear um objeto desconhecido. Daí sentir-se inseguro, desprotegido, sujeito a situações de risco pessoal ou de perigo, real ou imaginário. Segurança pública é uma atividade. Desenvolvida pelo Estado, destina-se a empreender ações e oferecer estímulos positivos para que os cidadãos possam conviver, trabalhar, produzir e usufruir o lazer. As instituições responsáveis por essa atividade atuam no sentido de inibir, neutralizar ou reprimir a prática de atos anti-sociais, assegurando a proteção coletiva e, por extensão, dos bens e serviços públicos.
A partir dos conceitos acima, pode-se inferir que política de segurança pública é um instrumento de mudança utilizado pela administração para alcançar a paz social e a segurança de seus cidadãos. É um conjunto de propósitos do poder político do Estado, traduzida em diretrizes e ações, direcionadas às suas instituições orientado-as quanto ao caminho a seguir.
Tratando-se de sentimento coletivo, segurança pública é susceptível de influências de fatores controláveis. Conseqüentemente, ações concatenadas de segmentos diversos (públicos e privados) podem induzir sensações positivas ou afetar sua intensidade.Segurança pública é gênero da qual a polícia é espécie. Não são sinônimos. A Constituição Federal ao dispor que além de dever do Estado é responsabilidade de todos, deixa claro que cabe ao Poder Executivo (Federal, Estadual e Municipal) conduzir as ações de segurança pública e que estas não se exaurem na atuação do aparelho policial.
Polícia é uma atividade substantiva e una. Os adjetivos que a qualificam têm o condão de identificar instituições que se responsabilizam pela execução parcial de uma determinada seqüência de ações. Assim, Civil, Militar, Judiciária, Federal, Rodoviária, Preventiva, Ostensiva, etc. são, somente, parte de um todo cujo nome comum é polícia.
Sem coordenação, é impraticável concatenar ações e estímulos positivos capazes de oferecer segurança à população. Por mais eficiente que uma instituição possa ser, a eficácia de suas ações estará comprometida se não ajustadas ou integradas às ações das demais. Daí a subordinação sistêmica das instituições de segurança pública a um só comando é imprescindível.
Não está claro, também, o que vem a ser sistema de segurança pública. A utilização da palavra sistema pressupõe que exista organização definida, tal como acontece no sistema judiciário, em que as competências e responsabilidades estão constituídas com clareza. Para a segurança pública, existe no máximo uma rede nacional, em que os papéis dos diversos órgãos e organizações civis não estão definidos, mas freqüentemente se misturam e até conflitam. Há necessidade, pois, de um esforço para que se consiga a realização deste sistema. A falta disto impede a existência, por exemplo, de padrões nacionais para a formulação de indicadores, e, sobretudo, para o enfrentamento dos problemas gerados pelo processo de globalização.
Segurança pública não se restringe à atividade policial, como se consagrou nesse país. Vemos segurança pública como o dever do Estado de proteger a sociedade dos riscos diretos a que o cidadão está exposto, passando pelos quase-crimes, englobando a atividade policial na prevenção e repressão à criminalidade, perpassando as atividades do Ministério Público e da Justiça, até alcançar o sistema penal. A estas somam-se as políticas públicas que influenciem a redução de riscos no ambiente social, equacionem situações conflitivas, fortaleçam a cidadania e conduzam à paz social.
A importância da perfeita compreensão dessa dimensão da segurança pública pode ser mensurada. Por sua interdependência, todas essas atividades do Estado devem se encontrar num mesmo patamar de desenvolvimento. Hoje, com todas as deficiências do aparelho policial, encontramos milhares de processos criminais pendentes de julgamento. Mesmo com tal morosidade, milhares de mandados de prisão aguardam cumprimento por falta de espaço nos presídios. A impunidade e o tempo que medeia a ação criminosa e a sanção punitiva, são os maiores aliados dos que contestam o sistema legal através do delito.
Outra conseqüência importante desse entendimento é a diluição da carga de pressão que hoje pesa sobre a Polícia. Por falta de um arcabouço doutrinário em torno desse assunto as distorções vão crescendo e a saída para o problema fica cada vez mais distante.

CAMARA, Paulo Sette, - consultor de segurança pública e privada. É diplomado em cursos de especialização no Brasil e no exterior, tendo ocupado o cargo de Secretário de Segurança Pública do Estado do Pará em dois períodos, num total de doze anos e de Roraima, quando ainda era Território Federal, por um ano. É autor de dezenas de artigos publicados e de um livro (Reflexões sobre Segurança Pública) editado pela Universidade da Amazônia. Proferiu palestras e conferências em congressos, seminários e vários Estados e foi agraciado com títulos, comendas e medalhas. Disponícel em: http://www.forumseguranca.org.br/artigo/defesa-social-e-seguranca-publica

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